Erradicar a fome do mundo até 2030 é um dos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) estabelecidos pela ONU. Um imenso desafio que ainda parece distante de ser vencido. Dados da própria organização mostram que cerca de 800 milhões de pessoas vivem em situação de insegurança alimentar.
Na linha de frente do combate à pobreza, à desnutrição e à fome no planeta está a FAO, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, criada há 75 anos, com atuação no mundo todo, inclusive no Brasil.
Neste momento em que a pandemia evidencia as diferenças sociais e econômicas entre os países, agravando o problema da fome, o Comida Boa conversou com o representante da FAO no Brasil, Rafael Zavala. Ele conta um pouco da história da organização, como ela atua no enfrentamento das questões relacionadas à segurança alimentar das populações globais e o papel do Brasil no cenário internacional.
Qual é o papel da FAO?
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, foi uma das primeiras agências criada pelas Nações Unidas. Na época de sua criação, logo após a Segunda Guerra Mundial, a FAO tinha como único objetivo alimentar o mundo. Posteriormente, esse objetivo foi ajustado e evoluiu para a luta permanente contra a fome. Atualmente, seguimos lutando para combater a fome, pela redução da pobreza e por uma alimentação saudável, sobretudo na América Latina, que é a região com o maior índice de obesidade. O que fazemos como agência, é nos aproximarmos dos governos para fomentar a geração de políticas públicas para a segurança alimentar, redução da pobreza, do combate à fome e por uma alimentação mais saudável para todos.
Há quanto tempo a FAO atua no Brasil?
No ano passado, fez 40 anos que a FAO atua no Brasil. Temos duas linhas principais de trabalho no país. Internamente, como o Brasil é um país imenso, há muitos focos de pobreza e podemos fazer muito para melhorar o acesso à alimentação e pela redução da pobreza. E, também, atuamos para estabelecer uma estratégia de melhoria dos sistemas alimentares, especialmente, nas cidades médias e grandes.
Os principais focos da FAO no Brasil estão na região amazônica – com o desafio de estabelecer uma boa governança e o melhor aproveitamento dos recursos naturais – e, também, no Nordeste. Nossa preocupação está em melhorar a alimentação da população da região semiárida. No Nordeste, há muitas cidades com alto índice de desnutrição, equiparáveis a países da África. E temos que trabalhar para combater a desnutrição, especialmente, a desnutrição infantil.
No restante do Brasil, nossa principal abordagem é pela alimentação saudável, pelo combate à obesidade e pelo estabelecimento de políticas públicas que fortaleçam sistemas alimentares locais, que reduzam a distância e a emissão de carbono entre o produtor e o consumidor. Sobretudo, buscamos melhorar a alimentação nas escolas, através da oferta de uma merenda escolar saudável.
Qual o papel desenvolvido pelo Brasil na agência?
Nas estratégias de cooperação, o Brasil está entre os 3 países mais importantes dentro da FAO. O Brasil – através do programa de cooperação entre a agência de cooperação brasileira, a FAO e os países da América Latina e do Caribe – está muito presente em três grandes temas.
O primeiro é o fortalecimento da agricultura familiar, especialmente, neste ano em que iniciamos a década da agricultura familiar.
Outro tema muito importante, que configura um dos processos de maior sucesso, é a aliança com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. A grande lição brasileira é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Digo a vocês que se houvesse Olimpíadas de políticas públicas, sem dúvida, o Brasil levaria o ouro no concurso de políticas para alimentação escolar.
Por fim, há a questão de promoção de políticas para o fortalecimento da agroecologia. Estes são os três grandes temas da Cooperação.
Dentro do tema da agricultura familiar, destacamos o programa de produção de algodão do qual participam 12 países da América Latina. 30 países participam do programa de alimentação escolar e a agricultura familiar é um foco importante em 6 países.
Quais as principais causas da desnutrição e da fome no mundo?
Se analisarmos as crises de alimentos, de segurança alimentar, percebemos que existem quatro razões principais que podem acontecer isoladas ou juntas.
Temos os conflitos armados dentro dos países; os choques econômicos como recessão ou desaceleração econômica que causa um impacto muito forte e escassez de alimentos; a terceira razão é o clima, as crises alimentares geradas por secas ou inundações; e, finalmente, muito em sintonia com a nossa atualidade, a quarta razão é uma crise sanitária devido a crises epidêmicas. Infelizmente, existem vários países onde estes quatro motivos ocorrem juntamente o que é um grande desafio.
No caso da América Latina, as principais causas da fome são a questão econômica e a pandemia, mas, sazonalmente, as inundações e as secas também trazem problemas. Na América Latina, antes da pandemia havia 57 milhões de pessoas em condições de insegurança alimentar. Depois da pandemia, vamos chegar a quase 90 milhões. Entre 85 e 90 milhões de pessoas. O que significa mais gente afetada pela pobreza e também em condições de insegurança alimentar. Isso não é admissível em um continente que é celeiro para muitas partes do mundo.
Por que o mundo ainda não atingiu a meta de fome zero?
As principais dificuldades são duas. A primeira é a vontade política de todos os governos e todos os estados em nível global. E a segunda razão é o desafio criar políticas públicas de longo prazo que visem a geração de empregos. Precisamos estabelecer estratégias para alimentação em geral, mas com ênfase muito forte na alimentação infantil para o combate à desnutrição infantil e para alimentação escolar adequada. Por fim, precisamos de uma estratégia econômica que ofereça estabilidade à economia e à população.
Como a ciência e a tecnologia podem colaborar para enfrentar o desafio de eliminar a fome no mundo?
A ciência e a tecnologia são algumas das chaves para aumentar a produtividade de alimentos e, principalmente, gerar sistemas alimentares sustentáveis. A ciência e a tecnologia fazem muito pela produção com uso reduzido de água, na luta contra a erosão do solo e a desertificação. Tudo isso, certamente, pode ajudar no aumento da produção. Temos um desafio na produção de alimentos de criar sistemas alimentares mais sustentáveis, com menos uso de recursos naturais, com menos uso de água e, também – o que é muito grave, com uma redução nas perdas e desperdícios de alimentos. Atualmente, ainda 30% da produção são perdidos ou desperdiçados no mundo. Isso também significa desperdício de toda a energia e água que foram usadas para essa produção. Não é mais possível que sigamos mantendo esses níveis de desperdício.
Então, é claro que a tecnologia tem muito a ver com esse desafio de produzir mais com menos, de produzir alimentos melhores, mais saudáveis e com redução de perdas e desperdícios.
O que pode ser feito para combater a fome no Brasil?
Nos últimos 15 anos, o Brasil deu uma grande lição para a redução da fome e da desnutrição. Isso tem a ver com cinco questões que podemos apontar.
A primeira é a priorização do tema. A redução da fome foi um ponto prioritário durante 15 anos no Brasil. Soma-se a esse benefício, o ponto número dois: a política pública que foi muito bem-sucedida no Brasil.
Uma política de proteção social por meio de programas de transferência condicionada, como o Bolsa Família. Outro exemplo: em um período de 10 anos, o salário-mínimo cresceu em mais de 70%. E, além de fortalecer o sistema de proteção social, a criação de empregos e a estabilidade econômica também foram fortalecidas.
O quarto ponto é o fortalecimento das políticas públicas voltadas para a agricultura familiar e a continuidade do fomento da agricultura de médio e grande porte. O Programa Nacional da Agricultura Familiar, junto com o fortalecimento da merenda escolar e do programa de compras de alimentos da agricultura familiar, fortaleceu as estratégias de alimentação escolar por um lado e, também, incluiu os pequenos produtores nestes sistemas alimentares em nível regional.
Finalmente, o último ponto tem a ver com o controle social, com a inclusão das comunidades na solução dos problemas, dos conceitos de segurança alimentar que foram gerados. Estes são os cinco pontos que devem ser destacados neste grande avanço que o Brasil teve no combate contra a fome.
Então, para o senhor, o Brasil é um bom exemplo?
Estou seguro de que sim. O Brasil aprendeu a grande lição de como fazer. Tem apenas que se fortalecer em alguns aspectos, mas a política pública de visão de longo prazo está aí. É preciso fazer alguns ajustes antes do crescimento iminente de pobres não só no Brasil, mas em nível mundial. O desafio está aí e o Brasil mostrou que sabe como fazer.