Transformar pequenas áreas do bairro onde vivia. Assim Hans Dieter Temp teve a ideia de aproveitar espaços urbanos para produzir alimentos e, ao mesmo tempo, melhorar o aspecto do bairro de São Matheus, na zona leste da capital paulista. Hans decidiu cultivar hortaliças que, além de mudar o jeito da comunidade, criou a oportunidade de empregos, renda e o senso de empreendedorismo de famílias de baixa renda.
O projeto Cidades Sem Fome que iniciou em 2004, hoje mantém 33 hortas urbanas – que oferecem trabalho a 300 pessoas – e outras 51 pequenas hortas em escolas públicas. As áreas, que antes estavam degradadas ou serviam para despejo de lixo e entulho, produzem 33 culturas diferentes, entre verduras, legumes, chás, ervas medicinais e aromáticas.
Conheça mais sobre essa história, que já ganhou muitos prêmios no Brasil e no exterior, na entrevista que fizemos com o fundador da ONG, Hans Dieter Temp.
Como surgiu a ideia de usar espaços urbanos para a produção de alimentos?
Assim que comecei a frequentar São Matheus, percebi que nessa região, apesar do contexto urbano que caracteriza os bairros de uma maneira geral. Havia áreas ociosas sem nenhum tipo de construção ou utilização específica. São áreas privadas e públicas, geralmente envolvidas em questões de litígios por herança ou então áreas pertencentes aos órgãos públicos. Essas áreas sem destinação própria representam um grande passivo para as comunidades dos entornos, uma vez que, sem utilização adequada, transformam-se em depósitos clandestinos de lixo e entulho, proporcionando condições favoráveis para as ocupações ilegais e desordenadas de moradias e a transformação dos espaços periurbanos em favelas e guetos.
Qual a motivação da sua organização para criar e manter esse trabalho?
A ideia não teve um foco social em seu início, não imaginava que o desenvolvimento de hortas em áreas urbanas viesse a se transformar em um projeto social com repercussão em todo o Brasil e até no exterior. Acho que fui impulsionado pelo contexto da situação, pela vontade de fazer algo diferente, de trazer melhorias para a comunidade e para o meu país, de empreender e inovar, de mostrar que soluções para o combate à pobreza existem e são viáveis.
Qual é a proposta do projeto?
A proposta do projeto é inovadora em seu contexto ao recuperar e dar destinação social e econômica para áreas sem uso específico ou até degradas em nossa cidade. A inovação consistiu em dar um novo significado para as conhecidas Hortas Comunitárias, que na maioria das vezes eram construídas num modelo de natureza ideológica, de socialização ou de terapias ocupacionais. Ao utilizá-las como ferramenta, o projeto cria oportunidades de geração de renda para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Transforma um processo embrionário em um “Negócio Social”, aproveitando as potencialidades locais e as demandas sociais existentes em nossa cidade. Além de dar um sentido e uma utilidade para a grande quantidade de áreas sem utilização específica, que abrem espaço para moradias de risco, destruição do meio ambiente, criatórios de mosquitos da dengue e núcleos de violência, a estratégia envolve uma forte rede de parcerias que, atuando de forma conjunta, traz resultados expressivos nas propostas de geração de trabalho e renda e na melhora nutricional dos envolvidos. Essa forma inovadora de criação de “negócios sociais urbanos” potencializa diversos ativos locais que antes, sem serem combinados, eram desperdiçados e comprometiam o desenvolvimento das estratégias de inclusão social de comunidades.
Como escolhem as áreas para a implantação das hortas?
As áreas são escolhidas de acordo com o orçamento que a CIDADES SEM FOME possui a cada ano. Primeiramente, fazemos o trabalho de captação de recursos para compor nosso orçamento, o que é uma tarefa de gigantes, bem difícil no Brasil e no atual cenário mundial. As captações são via empresas privadas, autarquias e órgãos do governo – em editais nacionais e internacionais – premiações, fundações de fomento multilateral e pessoas físicas.
O segundo critério é intensificar a implantação de hortas em um espaço geográfico da cidade (hoje, bairro de São Mateus e adjacências). Isso permite otimizar os recursos dos investidores usando os mesmos técnicos para implantar e monitorar várias áreas próximas ao mesmo tempo, além de usar maquinários, veículos e equipamentos de forma comum. Assim, evita-se a necessidade de ter vários veículos e grande quantidade de combustível para se deslocar de uma região a outra da cidade. Mas o ponto principal para a concentração das hortas em uma determinada região, é a possibilidade de produzir em grande escala e, com isso, viabilizar novos negócios e alternativas rentáveis para a comercialização dos produtos. Como a principal dificuldade para qualquer negócio em São Paulo, assim como em qualquer metrópole, é a logística, é sensato e inteligente criar zonas/núcleos de produção que permitam a formação de parcerias comerciais. Essas parcerias comerciais garantem ao projeto Hortas Urbanas/ONG CIDADES SEM FOME, alcançar suas principais metas: a criação de trabalho e renda para pessoas em vulnerabilidade social e a criação de novos negócios.
As áreas são doadas ou cedidas para uso? Como funciona essa questão burocrática?
As áreas são cedidas em comodatos não onerosos. Cada empresa ou órgão que possui áreas urbanas em seu poder trata a questão dessa “sessão de uso” de forma diferente. No início de nossas atividades, tivemos alguns problemas para o uso do solo urbano para projetos de agricultura. Os gestores dos espaços urbanos não entendiam como isso poderia beneficiar o munícipio, as pessoas, como isso poderia se manter sustentável. Todos só entendiam as características principais da cidade de São Paulo, que é a indústria, o comércio e a prestação de serviços. Ao longo do tempo essas tratativas começaram a se tornar mais fáceis. À medida que os resultados foram se consolidando, houve o despertar do interesse de empresas detentoras de áreas urbanas porque essa “sessão de espaços” trazia enormes vantagens.
Qual a importância do desenvolvimento de Projetos de Hortas Urbanas ou Programas de Agricultura Urbana?
As hortas urbanas reduzem a insegurança alimentar das famílias participantes na medida em que aumentam o acesso à comida, especialmente, a alimentos frescos e ricos em nutrientes. Famílias pobres, vulneráveis e, especialmente, as crianças são os maiores beneficiados pela disponibilidade de alimentos para o autoconsumo e pela renda acrescida pela venda da produção das hortas. A maioria das famílias pobres chega a gastar entre 60 e 80% de sua renda com comida e os beneficiados com as hortas urbanas podem reduzir esse gasto para 20, 30%.
Superar a insegurança alimentar e nutricional, com sustentabilidade ambiental e econômica, em regiões metropolitanas é hoje um dos maiores desafios para sociedades de todo o mundo. Reduzir a fome e o desemprego e, ainda, devolver à terra sua função de produzir tem se consolidado cada vez mais como responsabilidade de agentes sociais, comunidades e poder público. O aproveitamento de espaços urbanos disponíveis ou subutilizados, por meio do cultivo de frutas, hortaliças e plantas medicinais é uma tendência de futuro, que extrapola as iniciativas pioneiras em pátios de escolas ou creches. A agricultura está entre as principais vocações econômicas de muitos espaços periféricos urbanos e metropolitanos. Sua proximidade com o mercado consumidor faz dela uma atividade dotada de grande potencial de crescimento. As hortas urbanas possuem uma elevada capacidade de geração de emprego e de renda de forma sustentável a custos relativamente baixos. O valor estético de espaços verdes, a formação de microclimas, a prevenção de doenças por meio de uma alimentação diversificada e o poder curativo das plantas medicinais são componentes da qualidade de vida proporcionadas pela agricultura urbana. Entre tantas possibilidades e iniciativas, sem dúvida, o desenvolvimento dessa agricultura tem importante papel para contribuir para o futuro da sustentabilidade das cidades.
Como transformam áreas urbanas em terras férteis para a agricultura?
Com a tecnologia que dispomos hoje, e pelas experiências que pude vivenciar em diferentes locais do Brasil e do mundo, arriscaria afirmar que toda e qualquer terra pode ser cultivada. Exemplos típicos são a produção de alimentos no sul da Alemanha – com temperaturas a 23ºC abaixo de zero – a produção intensiva de cítricos nos desertos de Israel, a grande produção de frutas e flores com qualidade insuperável no sertão nordestino e, por que não falar, das hortas nas áreas urbanas degradadas das grandes cidades como São Paulo. São exemplos típicos onde a barreira das impossibilidades e improbabilidades foi rompida e os resultados mostram-se espetaculares, trazendo benefícios para milhares de pessoas e, o mais importante, transformam regiões antes deficitárias em poderosos pólos econômicos. O grande problema é o custo dessa tecnologia para a produção de alimentos, ainda acessível a poucos.
Como as hortaliças são comercializadas? Os preços são menores do que os de mercado?
Sim, são menores na maioria das vezes, principalmente, porque são produtos colhidos quase à vista dos clientes e, também, pelas características do próprio projeto com foco em beneficiar pessoas em situação de vulnerabilidade social. Temos a preocupação de manter os preços acessíveis aos consumidores locais e regionais. Uma vez que o projeto é subsidiado ou financiado para uma causa social, não seria justo excluir consumidores de renda mais baixa dos resultados finais das hortas urbanas e somente vender em regiões que concentram maior poder aquisitivo.
A comercialização é feita de 3 maneiras diferentes.
– Para empresas que negociam grandes quantidades de alimento para cozinhas industriais, empresariais, hospitais, presídios, hotéis.
– Com a criação de ferramentas locais de comercialização como sacolões, hortifrutis, lojas e entrepostos. Isso atende a um dos quesitos de nossos projetos que é a criação de novos negócios, capacitação para a geração de renda e para o empreendedorismo, criação de ferramentas de gestão e controle fáceis de serem assimilados pelos beneficiários.
3ª – Vendas pela internet e whatsapp. Temos grupos com o cadastro de centenas de telefones de pessoas que se interessam pela compra de nossos produtos. Toda segunda feira enviamos a lista de produtos disponíveis para a semana através de grupos de distribuição pelo whatsapp. Os clientes selecionam os itens que querem comprar, mandam seus pedidos de volta via whatsapp, colhemos, confeccionamos as cestas e entregamos via Uber. O custo corrida do Uber é acrescido ao valor final do pedido.